sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Leituras à Solta com a crónica “Dos oito aos oitenta”

Hoje, foi lida aos alunos da turma A do 9.º ano a crónica “Dos oito aos oitenta”, que publicamos integralmente. Com a leitura desta crónica pretendeu-se, em diálogo com os alunos, mostrar-lhes como era o modelo de ensino da Escola do Estado Novo, nomeadamente a sua organização, os seus símbolos, os castigos corporais…
Entre 1948 e até 1974, o Ensino Primário Elementar era constituído por quatro classes e apenas terminava com a aprovação no exame da quarta classe. Este exame foi instituído como obrigatório em 1948 e apenas deixou de estar em vigor após 1974.
Entre os anos 40 e 50, apenas era obrigatória a frequência escolar até às três primeiras classes, terminando com um exame. Em 1956, os rapazes passaram a ser obrigados a frequentar os quatro anos de ensino e instituiu-se outro exame, o de quarto ano.
Em 1960 todos os alunos ficaram obrigados a frequentar os quatro anos de ensino primário, independentemente do sexo, passando apenas a existir um exame final para a conclusão do ensino elementar.
No final do quarto ano e, após o exame realizado, seria suposto que os alunos estivessem habilitados a ler, escrever e contar. Só depois do ensino elementar se seguia o ensino complementar - quinto e sexto anos -, mais restrito e seletivo.

Dos oito aos oitenta!

Lembro-me de ter frequentado o 1.º ciclo, o denominado ensino primário, no tempo do Estado Novo. Lembro-me das reguadas, dos “bolos”, das canas da índia, dos grandes ditados, das infindáveis cópias, das inúmeras chamadas orais sobre os nomes dos rios e serras de Portugal, sobre a tabuada, toda ela de cor. Tantas e tantas coisas que não desejo a ninguém!

Recordo-me que, no final do 1.º ciclo, tive de fazer o exame da 4ª classe na sede do concelho. A nossa professora, D. Filomena, que ainda é viva, pedia-nos que não a deixássemos ficar mal perante o júri. E para sermos bem-sucedidos, o seu zelo chegava ao ponto de nos dar aulas suplementares! Queria a aprovação de todos os seus alunos neste exame! Estava em jogo o seu prestígio e o seu trabalho. Nenhum de nós ousava desgostá-la, muito menos entristecê-la. Todos os seus alunos, sem exceção, tinham por ela o maior carinho e a maior admiração.

Lembro-me que maior parte dos pais dos meus colegas trabalhava na agricultura de sol a sol. Quase todos eram caseiros (rendeiros), analfabetos e não vinham à escola para saber do rendimento escolar dos seus educandos. Todos eram bons pais, mas não tinham tempo para acompanhar os filhos que mandavam para a escola descalços, pouco agasalhados e a tiritar de frio, com os estômagos vazios e as calças rotas e remendadas. 

Muitos dos meus colegas traziam para a Escola, apenas, uma sacola de pano onde um pedaço de lousa se misturava com as côdeas de pão de raro miolo onde despontava, às vezes, os primeiros sinais de bolor. Alguns destes meus colegas, fora da idade escolar, já com bigode frequentavam, ainda, a escolaridade obrigatória não por falta de capacidades, mas porque eram “roubados à escola” pelos pais, que precisavam deles para apascentar as vacas, as ovelhas e as cabras.

Às vezes, também eram imprescindíveis para guardar os seus irmãos mais novos e para segurar com mãos calosas a soga, à frente das juntas das vacas, nas intermináveis “lavoeiras”, principalmente durante os meses de Abril e Maio. Também eram necessários à frente das vacas para as infindáveis carretas de mato que desciam carpindo o Monte das Cadeiras.

Lembro-me de cantarmos o hino Nacional, vigiados pelas fotografias do professor Marcelo Caetano e do Almirante Américo Tomás.

Lembro-me de termos reduzido drasticamente o nosso espaço do recreio escolar que foi cavado e transformado em terra arável para receber uma horta. Nos intervalos brincávamos, mas não calcávamos os legumes com os quais a nossa professora, D. Filomena, fazia a sopa para a maior parte dos meus colegas pobres.

Lembro-me de que, nessa época, éramos todos solidários: preocupavámo-nos uns com os outros e ajudávamos os mais necessitados. Todos os pais e alunos respeitavam e adoravam a professora D. Filomena.

Foram tempos muito duros e difíceis: sem liberdade e sem pão, mas todos sobrevivemos. A maior parte, com apenas a quarta classe, deixou o nosso concelho e emigrou ou foi para as grandes cidades, nomeadamente para Lisboa, Porto e Braga. A maior parte triunfou na vida. Felizmente, nenhum deles trilhou caminhos de perdição, nomeadamente o do álcool e das drogas…

Quase todos tiveram de crescer rapidamente, pois começaram a trabalhar aos 11, 12 e 13 anos na indústria da restauração, a lavar pratos ou atrás de um balcão e tornaram-se empresários de sucesso. Alguns deles são uns verdadeiros exemplos para muitos de nós. Para além de honrados, estudaram e chegaram a fazer cursos superiores.

Na minha meninice, não ousávamos discutir as ordens dos nossos pais e da nossa professora. Também não discutíamos as regras e os valores. Aprendíamos coisas simples tais como “Bom dia”, 'obrigado', 'desculpe', com licença”, 'se faz favor'.

Hoje, temos condições ímpares para formarmos bons cidadãos. Mesmo condicionados pela “Troika” vivemos em democracia e, apesar dos magros recursos, temos uma organização política e social, incomparável com a do tempo do Estado Novo.

No entanto, fomos dos “oito para os oitenta”. De uma cultura de exigência militarista, hierarquizada, unidirecional, autoritária passamos para atitude laxista e desculpabilizadora. Desculpamos a indisciplina, a violência, a má educação, a falta de respeito. Muitos pais encorajam os filhos ao incumprimento das regras. Outros contestam-nas. Há pais que veem os professores não como os principais aliados na educação dos seus filhos, mas como incompetentes por não os saberem motivar, desculpabilizar e compreender.

Os pais destes meninos, que têm uma visão romântica da Escola e da Educação, são tudo menos educadores. Alguns habituaram-se a ir aos conselhos de turma dizer que os professores não ensinam e que os seus filhos são umas vítimas. “Os professores são todos iguais!” Alguns chegam a ter uma visão corporativista dos professores. Quando responsabilizados, por falta de bom senso, afirmam que os professores se unem com o fim de perseguirem os seus filhos.

De facto, o mundo de muitos dos nossos pais “está às avessas”, “de pernas para o ar”, pois não se pode ter uma visão romântica da Escola aceitando-se a indisciplina, a violência e a falta de respeito como naturais.

Se dermos razão aos pais românticos, a indisciplina e a violência escolares crescerão exponencialmente e poderão atingir dimensões difíceis de controlar. Se assim fosse, voltaríamos a passar “dos oito aos oitenta!”

Texto de José Guimarães Antunes publicado no Correio do Minho (9-02-20212)  


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